(Mais um texto que elaborei para a disciplina Teologia e Metodologia Pastoral, em 2008)
Se Deus é bom, como explicar tanta dor no mundo?
Ainda se não bastassem, as divergências e picuinhas entre os cristãos das diversas denominações, outro ponto crucial embaraça o crente e, às vezes, faz a sua fé balançar: o sofrimento humano. Se Deus é bom, e todo o religioso convicto tem essa certeza, não podemos atribuir o sofrimento à vontade do Criador. Por outro lado, se existe o mal, e não temos como negá-lo, pode ficar fragilizado o argumento de que Deus é bom e onipotente. Aqui, parece-me que se encaixa bem a tese de Santo Agostinho de que é preciso crer para compreender, pois só acreditando em Deus e na Boa Nova de Jesus Cristo podemos aceitar o sofrimento sem incorrer no tão comum erro de atribuí-lo aos desígnios do Criador.
O tema sofrimento humano tem tirado o sono de muitos cristãos, sejam eles teólogos ou leigos. Há, inclusive, algumas correntes de pensamentos neo-pentecostais que pregam que o verdadeiro crente está imune ao mal. Outros, também fundamentalistas, sem se darem conta que com isso estão tirando a bondade do Criador, atribuem o mal a vontade de Deus. Encontramos, ainda, aqueles crentes “pés no chão” que, racionalmente, aceitam a existência do mal e do sofrimento e o atribuem ao livre-arbítrio, à ganância humana, à falta de solidariedade. Esses últimos, embora, às vezes, lhes faltem argumentos para explicar o sofrimento, conseguem compreender que a dor humana independe do grau de fé que possuímos. Compreendem, inclusive, que a fé ajuda a suportar o sofrimento. Quando a pessoa tem fé, passa a impressão de que o sofrimento lhe aproxima ainda mais de Deus. Aliás, Jesus mesmo disse: “Felizes os que sofrem, pois herdarão o céu...”
Nada sintetiza melhor o sofrimento do que a paixão e morte de Jesus, na cruz. Ele pagou, injustamente, pelos pecados de toda a humanidade. Quando sofremos e suportamos a dor, experimentamos a cruz. Essa é a opinião do teólogo Martin Dreher em uma de suas obras. Ele usa a figura bíblica de Elias para falar sobre o sofrimento, ressaltando que na vida do profeta podemos perceber muito do que experimentamos em nossas vidas. Dreher chama atenção para os altos e baixos, glórias e derrotas na vida de Elias. Essas alternâncias existenciais permitiram que o profeta vivenciasse o que significa experimentar a cruz.
Desde os tempos mais remotos, a humanidade busca sempre a vitória, a glória. Foi assim com Elias, no monte Carmelo. Derrotar e humilhar os profetas de Baal, conforme o relato bíblico, foi uma glória para o profeta. E nós hoje, invocando esse mesmo Deus, buscamos sempre mais. Precisamos ser os melhores na escola, no trabalho, na sociedade. E quando isso ocorre, comportamo-nos de forma ainda mais cruel do que Elias. Ele atribuía a seu Deus a vitória, enquanto nós, na maioria das vezes, esquecemos de Deus quando somos bem sucedidos.
Mas Deus, na sua infinita bondade, veio ao mundo para mostrar-nos que a verdadeira vitória não está em derrotar os nossos desafetos. Jesus Cristo, encarando a natureza humana, venceu o mundo e a morte, com o verdadeiro amor, compadecendo-se com os que sofrem, chorando com os enlutados, querendo o bem até mesmo daqueles que o desprezam. E o seu sofrimento foi ao extremo, até a morte na cruz.
Jesus ensinou que o seu reino não era desse mundo e nós, no momento de maior dor que é o da morte de nossos entes queridos, usamos uma liturgia pascal. Mas isso não nos deve tornar insensíveis, pois o próprio Jesus chorou diante da sepultura de seu amigo Lázaro.
Depois de ter sido ateu por muitos anos, C. S. Lewis, em seu livro “O Problema do Sofrimento”, enfatiza que é preciso uma reflexão muito profunda para que possamos discorrer sobre o tema sem passar aos incrédulos a idéia já corrente de que a religião é algo ingênuo e sem fundamento. Lewis ressalta que as criaturas provocam sofrimento ao nascer e vivem infligindo sofrimento e, além disso, são dotadas de razão, uma qualidade que lhes tornam capazes de prever o seu próprio padecer, sua própria morte. A história humana, em sua maior parte, é um registro de crimes, guerras, doenças e terror. E quando se é feliz, vivemos temendo perder essa felicidade.
Diante desse quadro, Lewis argumenta que não há como acreditar que isto seja obra de um espírito benevolente e onipotente. Toda a evidência aponta para a direção oposta, ou seja: que não exista um espírito por traz do universo ou que ele seja perverso e indiferente ao bem e o mal. Assim, Deus seria o oposto do que prega o cristianismo, pois seria inconcebível atribuir a um Criador sábio e bondoso a criação de um universo mau.
Este mesmo autor adverte que, em certo sentido, o cristianismo cria, em vez de resolver, o problema do sofrimento. Quando falamos da onipotência de Deus, devemos ter bem claro que ela significa poder para fazer tudo que é intrinsecamente possível e não para fazer o que é intrinsecamente impossível. Lewis também chama atenção para o fato de que Deus pode fazer milagres, mas não tolices. E isto não é um limite ao seu poder. Nem mesmo a Onipotência poderia criar uma sociedade de almas livres sem ao mesmo tempo criar uma natureza inexorável e relativamente independente. A liberdade de uma criatura deve significar liberdade de escolha e escolha implica na existência de coisas a serem escolhidas. Se estivéssemos num mundo que variasse conforme os caprichos do Criador, não haveria o exercício do livre-arbítrio. O que nos parece bom pode não ser bom aos olhos de Deus e o que nos parece mau pode não ser mau. A bondade divina diverge da nossa.
O problema de reconciliar o sofrimento humano com a existência de um Deus que ama só é insolúvel enquanto associamos um significado trivial à palavra amor e considerarmos as coisas como se o homem fosse o centro delas. Lewis observa que o homem não é o centro e Deus não existe por causa do homem. Quando queremos ser outra coisa que não aquela que Deus quer que sejamos, devemos estar desejando, de fato, aquilo que não nos fará felizes. Deus dá o que Ele possui e não o que não possui.
Ram Dass e Paul Gorman, no livro “Como Posso Ajudar? Estórias e Reflexões sobre Serviço”, ressalta que o sofrimento dos outros espontaneamente liberta nosso desejo de socorrer. Abrimos o coração, nos sensibilizamos com o problema, mas, segundo o livro, ai surge a preocupação quanto ao grau de exigência que o sofrimento alheio acarretará sobre nós. Aparece, então, o medo que é uma reação ao próprio sofrimento e uma reação de resistência à compaixão natural do coração quando este vai ao encontro de alguém para participar de sua dor. Enquanto o coração não conhece limites na doação de si próprio, a mente se sente chamada para estabelecer limites. Por isso nos parece tão difícil escolher como vamos responder à dor de outros.
Dass e Gorman destacam que talvez procuremos solucionar essa tensão sem realmente ter que abrir a porta ao sofrimento. Como uma descarga de consciência, visitamos, rapidamente, um amigo doente ou fazemos uma contribuição beneficente, mas será que essas medidas vão satisfazer os corações, o nosso e o de quem sofre? Ajudar significa muito mais do que isso. Muitas vezes abrimos a porta parcialmente, demarcando limites de tempo e espaço para nosso envolvimento com o sofrimento dos outros.
Jesus teve compaixão do povo humilde que sofria. Por isso alimentou multidões e curou muitas pessoas. Dass e Gorman argumentam que a compaixão vem normalmente à medida que nos abrimos para a experiência do sofrimento. Quando observamos o sofrimento dos outros e nos compadecemos deles, nossa mente se abre e encontramos o apoio da verdade viva para ajudar.
Tanto quanto é difícil falar sobre o sofrimento, é importante refletir sobre ele. E quanto menos buscamos conhecê-lo, mais incorremos no erro de atribuí-lo ao diabo ou até mesmo a Deus. Seguidamente ouvimos pessoas dizerem, quando vêem alguém sofrendo: “É a vontade de Deus!”, “Deus quis assim!”, “Deus sabe o que faz!”. E tanto se ouve isso que acabamos não nos dando conta que Deus não pratica o mal e nem paramos para perceber o quanto de culpa temos ou o quanto somos indiferentes ao sofrimento dos outros.
Mas quando, realmente, vivemos a experiência da cruz, passamos a enxergar o mundo com outros olhos e, seguindo o exemplo de Cristo, temos compaixão pelos que sofrem e sofremos com eles. E essa experiência de compartilhar a dor nos traz maturidade, coragem e serenidade para encarar as dificuldades e provações que a vida nos reserva.
E mesmo que tenhamos a tentação de pensar que Deus, criador de todas as coisas, é também responsável pelo mal, vale ressaltar, como disse C.S. Lewis, foram os homens e não Deus que inventaram a tortura, os chicotes, as prisões, a escravidão, as armas, as baionetas e as bombas. Também, a pobreza e o excesso de trabalho são produtos da avareza ou da estupidez humana e não uma distorção da natureza.
Talvez a humanidade não possa erradicar por completo o sofrimento, mas, com certeza, viveríamos muito melhor e conviveríamos mais tranqüilamente com o sofrimento, se buscássemos primeiro fazer a vontade de Deus e O colocássemos no centro de nossas vidas. E sempre vale lembrar que Deus mesmo se fez homem e viveu entre nós, sofrendo por nossas culpas, sem nunca perder a compaixão.
REFERÊNCIAS
DASS, Ram; GORMAN, Paul. Como Posso Ajudar? Estórias e Reflexões sobre Serviço. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1987.
DREHER, Martin N.; Conversando sobre Espiritualidade, São Leopoldo: Editora Sinodal, 1992.
LEWIS, C. S.; O Problema do Sofrimento,Oxford. 1940.